sexta-feira, 20 de junho de 2008

Se não houver um amanhã (conto)

Hoje amanheceu, e o céu está brilhante. Fui contagiado por uma imensa alegria matinal que mal deu tempo de pôr os pés no chão e já estava quase pronto para um novo dia. Uma maçã na cesta, um copo d’água, aquele prato ainda sujo sobre a cabeceira que fica ao lado da cama e aquela rotina lascada abre a porta e entra no meu quarto com toda força que tem, mesmo sem ser convidada, como sempre. Aí eu me lanço naquela velha coreografia matinal: cuecão verde, calça jeans básica, meias folgadinhas de tão velhas, camisa do tipo ‘começo de semana’, a barba mal feita – porque continuo acordando tarde de mais para dar um jeito nisso, aquele banho básico de perfume, pasta na mão, sorriso ainda despenteado combinando com esse cabelo “sarará crioulo” que não toma jeito nunca, aqueles sapatinhos velhinhos polidos nos pés e os pés na rua.
Pronto! Meu dia começou super bem hoje. Isso porque eu só estou trinta minutos atrasado para chegar ao trabalho porque o infeliz do prefeito decidiu realizar suas obras reeleitoreiras justamente na minha rua; e já que eu não tenho nenhum helicóptero para ir até a esquina, como ele faz, vou ter que ir na minha carruagem mesmo e por isso tenho que sacrificar uma hora inteirinha de sono para poder chegar uma hora atrasado ao trabalho e perceber todos me olhando de cara feia – apesar dos super sorrisos estampados na cara do pessoal. Bem, mas vou aguardar meia horinha a mais que é pra aquele caos de fumaça e buzinas diminuir.
E hoje eu estou muitíssimo empolgado, e adorando isso, mesmo que eu ainda não saiba o motivo real dessa agonia efervescente que eu estou sentindo por dentro e que me proporciona essa empolgação momentânea que, por pouco, não se confunde com felicidade. E isso realmente está me fazendo toda a diferença nesse dia, porque, para mim, todos os dias nos últimos meses já estavam parecendo iguais, sempre as mesmas sensações, os mesmos lugares, as praias, as mesmas pessoas nas ruas, nas praças, nos bares, nas calçadas; tudo parecia se repetir, as notícias nos jornais, os políticos, as crianças a pedir dinheiro nas ruas – e agora também os travestis. É. Pode soar estranho; mas parece que é sempre dezembro, véspera de ano novo, dia dois vai ser imprensado e na próxima segunda começam umas super férias com grana no bolso. Imagina, né! Euforia geral e descomedida.
Embora, sempre, sempre, sempre, no outro dia sempre rola aquele fardo pesando em minha cabeça, e aquela caminhada que não pára nunca. Aliás, ainda não sei o que significa parar nem o que quer dizer nunca – e olhe que eu não sou o único que não tem noção do que é isso.
Mas, enfim, hoje eu acordei e me senti bem e foda-se a ressaca moral. Após quarenta e oito horas de puro tédio, fim de semana alucinante: ir além do próprio limite. Sim, essas horas de terror interno, sonolência em alta, bolsa em baixa, olhos amarelados, nariz escorrendo até dizer basta – com um algodão lá dentro que é pra dormir legal; e tudo bem, eu já sabia que quarenta e oito horas depois tudo voltaria ao normal.
E o que seria esse normal? Relativismo. Vida pacata, caminhada na praia com aquela amiga que não pára de falar bobagens da moda, ou que inventou um sotaque diferente só porque foi visitar um amigo no sul, soninho após a novela das oito, festinhas depois da meia-noite, ir direto trabalhar, nada de álcool, todas as drogas, sozinho ou num gang-bang, olhar indiscreto, atento, procurar um amor fora de si, encontrá-lo dentro de si… a normalidade era só uma expressão, do tipo, formal. E digo isso porque eu gosto profundamente dessa alucinação constante, fora dos padrões de normalidade, de coisa espalhada pelo vento, sem destino certo, sem nenhum “até amanhã”, nem promessas ou vantagens indevidas; esse meu progresso a Deus dará, subversivo desde a raiz até o último fio da falta de juízo, com passos descompassados, em linha sinuosa, num rítimo de ressaca de maré; não há como não se apegar a esse Santo nos momentos de aperreio.
Mas a quem possa contagiar e para aqueles que se deixam contagiar, os dias estão contados a partir de agora. Nesse mesmo instante de pura calma e sabedoria, uma carta me invade a carne, uma batida na porta me avisa que a correspondência chegou, e ainda estou com aquele achocolatado entalado na garganta. E vem de um povo distante, de um lugar sabe lá Deus onde fica. E quem seria? Quem havia se preoculpado comigo enquanto eu, aqui, minha Tv, frigobar e poltrona, delirávamos abraçados e rolando no chão? Puxei uma fitinha branca que veio colada no verso e, pluft, aquela fumaça branca invadiu o meu recinto (sabe aquelas bolinhas de ninja que ‘explode, fumaça e desaparece’? Pois é, era mais ou menos assim – só que isso não aconteceu. Surtei. Brincadeira isso…)
Aí eu páro aqui sentado na minha cama, olhando além da janela e não sei o que fazer num dia como hoje. Imagine só, como num estálo hipinótico, recebo uma cartinha, de alguém que só pode estar querendo tirar um sarro da minha cara, e neste exato momento deve estar rindo horrores de mim, e essa carta escrita com aquela caligrafia de poeta medieval, vem me dizer que... ahn, deixa eu lerrrrr i-s-ssss-ooo aaaa-aaa-aqu-iii... não! ha-ha-ha! Alguém só pode ter piraaaaaado de vez! Não! Fala sério! Escuta isso, dois pontos: não vai haver um amanhã; já pensou?! Nã, nã, nã, nã, não! vou ser mais preciso, “...se não houver um amanhã?”. Só um minutinho que eu vou ali na janela... “quem foi o loooooooooooouco que escreveu isso? (isso, issssoo, sso, so, o – o eco!)”. Não gente. Brincadeira isso; já não basta toda vagabundagem terrena neste continente emergente e, algum indivíduo, bastante ocupado, por sinal, tem o desprendimento de me fazer uma honraria como essa? É muita vadiagem pra uma pessoa só! Dá licença!
Tssss... mas aí eu já não posso fazer mais nada, porque uma pegunta filha de uma mãe como essa, a essa hora, só pode ser brincadeira, e só para brincar também eu já começo a pensar o que eu vou fazer hoje, só hoje. Só pra entrar no embalo mesmo.
Bem, eu não estou muito confiante nesse apocalipse que chegou pra mim num envelope michuruca me deixando ainda mais confuso, e, exatamente por isso eu não sei que raios eu faria num dia como hoje. Mas só para brincar também, vou gastar cinquenta centavos do meu tempo com isso.
Num dia como hoje, sem amanhã; eu não vou receber nenhum pagamento hoje, então, nem aí para o trabalho; já que aquela desgraça não vai pra frente mesmo. Invés de meia hora a mais pra esperar o trânsito desafogar, vou tentar afogá-lo ainda mais por mais três horinhas.
Mas acho que eu prefiro ligar pra aquele velho amor que foi embora pra muito longe e passar o resto desse dia inteiro conversando sobre os caminhos que a vida nos levou, e vou ficar flertando com ela o dia inteiro no telefone. Como seria bom se a gente estivesse junto agora, deitados ali naquele sofá cinza escuro no cantinho mais escondido da casa esperando pra ver se o dia vai clarear amanhã; mas acho que ela deve estar muito bem no velho mundo pra poder me atender depois de quase uma década sem nos falarmos direito.
Ou não, melhor, já que essa idéia não se realizaria nem se hoje fosse o último dia, eu iria na casa de todos os meus amigos para lhes dar um forte abraço silencioso, sairia para tomar um sorvete, se ainda houvesse algum sorveteiro na rua, ou simplesmente caminharia na praia – ha-ha-ha, até parece que eles iriam topar um programinha tão light como esse caso fosse nosso último encontro, e olhe que eu não iria poupá-los de saber o que se passa hoje ou o que não se passará amanhã. E se eu não quisesse vê-los? Se todos eles já se sentissem abraçados e confortáveis por não terem compartilhado comigo uma notícia tão desanimadora, ou não, e se agora eu pudesse ficar em casa esperando o badalo do relógio soar a chegada do nada? Sozinho. Será que eu teria coragem de querer um amanhã? De desembainhar minha espada samurai e lutar contra um pedaço de papel metidinho a vidente?
Não sei se valeria a pena. Mas do jeito que as coisas andam, prefiro ver o lado bomdessa situação ridícula: não ter que acordar cedo, não ser obrigado a ver na Tv os políticos sempre roubando, metendo a mão no meu bolso – e colocando no deles, claro! – tirando a esperança do povo, a polícia não mataria mais inocentes nem tentaria achar nada nos sapatos alheios, ninguém reclamaria mais de fome, nem de doenças, nem que falta dinheiro, nem teriam mais peruas que não sabem com o que gastar tanto dinheiro – o nosso dinheiro. Poderia até ser legal isso mesmo, sabia? Aquelas pragas de nariz em pé desfilando na beira-mar com aquelas malhas enfiadas no cú, silicone espalhado pelo resto do corpo, não teria mais reuniões fúteis durante o chá das seis para se falar da crise no casamento de mais ninguém; sem confusões, sem transições, ninguém sofrendo… iam-se embora todas as mazelas mundanas insuportáveis desse terceiro mundo e todo o povo que o manipula. Acho que eu estou até começando a ficar aliviado com isso. Olha só! Que notícia boa me veio essa manhã. Tudo o que eu tenho de mais insuportável se vai! Em mim e no mundo! Estou quase tendo um orgasmo aqui só de pensar no Congresso Nacional vazio... se bem que o “se não houver um amanhã” já começou há muito tempo por lá, mas o nada de amanhã vai servir só pra oficializar a parada.
Mas e aí… por quanto tempo eu iria sobreviver se o hoje se fosse? Pode até não haver um amanhã – e isso é um pessimismo fodido, porque o depois de amanhã provavelmente também não vai haver – não vai ser como um dia inteiro dormindo, sem sair do quarto. Sabe quando a gente se ferra, mas daquelas ferradas fuderosas e o desespero só dura quarenta e oito horas ou um pouco mais de tempo, e que isso é o suficiente pra tudo voltar ao quase-normal? Então, se não houver amanhã, depois de amanhã voltaria tudo a ser imperfeição? Tenho a sensação que não. No sentido estrito de perfeição, a sentença: se não houver um amanhã, só nos deixa duas opções, se uma delas acontece, a outra não virá depois; só no caso do ‘não’ vir por último.
Ah! Não! Porra, vou parar com essa deprê nada a ver que está batendo. Porra, último dia e vou ficar nessa? Nem fodendo! Quem for dormir cedo, bem, beijos, foi ótimo, foi muito bom ter lhes conhecido, ter compartilhado momentos inexplicáveis ao lado de vocês, mas não vou ficar nessa fossa na última noite de sempre-sexta aqui e morrer conformado com isso. Não, de jeito nenhum! Já que não vai sobrar nada amanhã, o agora é imprescindível. E nem sonhe o contrário.
Vou armar uma festinha longe daqui, que comece bem cedinho, daqui a pouco, que é pra gente curtir o máximo. Quero drogas, mulheres, rapaziada conversando, som ambiente bem relax – porque morrer freneticamente ninguém merece, é um som pra embalar nossos sonhos pra sempre.
Enfim, não vou mais ficar nessa paranóia de uma situação que nem aconteceu ainda… PQP! E se essa porra for acontecer mesmo?! E é bem provável que esta carta tenha sido enviada por um corno que estava naquela deprê de domingo-com-ressaca e disposto a arrombar a vida alheia. Mas, e se esse camarada for só um cara sincero? Céus! Hoje! Isso mesmo, hoje, é, nesse dia que me faz respirar, decido que vou virar porra louca! É. Vou botar pra foder. Virar homem bomba. Já que esta pica desse amanhã não vem mesmo, hoje vou despentelhar as putas lá da praia, e vai ser na cera! É, acho que hoje tem que ser inesquecível, porque já que esquecer do amanhã também está parecendo impossível, escolho hoje pra cometer minhas atrocidades: he-he-he.
Bem, por onde eu começo? Hnnn, deixa eu ver… isso não vai dar certo, vou ali na casa de um brother ver qual é; não, também não. Meu telefone! Vou ligar e marcar uma festa com os melhores dealers da cidade, comprar tudo que eu posso, consumir tudo que eu posso, foder todas que eu puder, cheirar, tomar, injetar, fumar, beber e tentar morrer tudo que eu posso! E olhe que eu pego pesado de mais nessas coisa e, como eu só páro em três hipóteses, o bicho ia pegar nas redondezas. Abre um parêntesis: em dias assim, o dia só acaba quando as coisas acabam, quando o dinheiro acaba, ou quando der pane no sistema e a galera sair fora do ar. Ou quando se recebe uma notícia miserável com uma premonição bastante razoável. Mas se eu botar pra foder hoje e acordar amanhã, mando Deus ir tomar no meio do cú cabeludo e fedorento dele e ainda cago na cruz; isso porque ele vai ser um filho de uma puta miserável que não tem dó de ninguém se amanhã aquela coisa pegando fogo aparecer lá atrás do mar. E quem quiser ficar em casa que chame o Diabo, porque sem amanhã, hoje eu posso tudo.
Ah! Mas sei lá, ficar estragadinho nesse último dia e não ter o que lembrar amanhã não vai ter muita graça. Acho que eu podia tentar algo novo e deixar de lado esse negócio de ser badernista-radical-extremista. Auto-destruição antes de amanhã não dá, né? Porque antecipar uma merda só duplica a carga de culpa e já que depois da meia noite eu vou dormir obrigatoriamente durante toda a eternidade, hoje eu podia tentar fazer algo novo. Fantástico man! É isso. Vou parar de fumar, beber, me matricular numa academia, sair dessa deprê que já dura pouco mais de dez anos, estudar, fazer yoga, acumpuntura, nadar umas duas horinhas na praia, tentar mesmo ser um menino bonzinho. Só por hoje, não custa nada. Vou doar minhas roupas, compartilhar o excesso de comida que tiver em casa. Acho que vou escrever o dia inteiro sobre isso, e realizar um livro – se bem que esta bosta não chegaria nem a ser publicada, mas tudo bem, vale a intenção. Eu poderia tentar ficar em casa um pouco, deitar na cama em família e ficar de piada o dia todo, contando velhas histórias de quando a gente era pobre, o quanto que eu e minha irmã aprontávamos e meus pais ficavam loucos; nossas viagens para o centro-oeste, realmente fazer aquela retrospectiva de fim de existência. Ai, ai… estou mesmo precisando de um pouco disso.
E hoje também eu tenho que achar um grande amor, me apaixonar mesmo e de vez, já que seria um amor de verão – de um dia só. Porque morrer para sempre sem ter se apaixonado, ninguém merece! E pra isso eu teria que achar alguém, e fazer essa pessoinha me amar de dia, me odiar à noite, ter um chilique quando eu ligasse para dizer “até nunca mais!” e, antes do grande soninho, eu a chamaria pra bem pertinho de mim e a deixaria mansinha dormindo nos meus braços.
Ah não, isso ía ser chato de mais – digo, esse negócio de dormir; porque justamente hoje eu não tenho vontade de dormir nem a pau; e ficar de observador de dorminhoco é de mais pra mim num dia tão especial quanto hoje. Será que se eu ficar acordado para sempre eu conseguiria driblar esse lance de não haver esse amanhã?
Hoje eu queria tanto que fosse amanhã. Sério. Hoje está tudo tão calmo, tem sol depois de longos dias de chuva. E eu ainda não sei o que eu vou fazer com as minhas últimas vinte e quatro horas. Meu último sono, o último café da manhã, almoço, jantar, os últimos beijos, abraços, desejos, transa, a última gozada. Quero um abraço bem apertado de alguém especial hoje antes que não venha o amanhã. Acho que eu te ligaria só pra ouvir tua voz e dizer que amanhã a saudade não vai ter vez, que o que a gente sente hoje, amanhã não vai crescer, que hoje é o último dia pra nos vermos ou pra sentir essa saudade sufocante; só que não vai dar, porque hoje é o nosso último dia mesmo e a gente se planejou de mais; mas tenha a certeza que eu vou te escrever do além que é pra lhe provar que eu pensei em você quase que meu último dia inteiro. Ou, quem sabe, a gente podia mesmo se encontrar e fazer sexo até não conseguir mais e, ainda assim, continuar naquela selvageria louca, até gozar e morrer, quando chegasse o amanhã.
E, pensando bem, olhando por esse lado, chego a ficar até com dó de quem nunca deu, hein! Credo. Dá até medo. Imagina só, vê se não parece piada. Papai e mamãe criaram com tanto carinho, melhor talquinho, fraldinha, pomadinha contra assadura no pipiu, preparando com tanto amor o caminho pra algum marginal com o cacete maior que o do seu pai, chegar e descabaçar com tudo, e você, morrendo de tesão, adorando muito tudo isso... e nhém nhém nhém, nem vai provar! Nooooossa, vou tirar o maior sarro da tua cara se a gente se encontrar no além. Porque meu último segundo vai ser com uma gozada fenomenal, meu corpo estirado lá e o esperma ainda escorrendo quentinho e você nem imagina, nem sonha, como isso é de-li-ci-o-so.
Aí eu ligo o som e coloco um disco bem legal que vai me fazer lembrar pra sempre como hoje foi bom, mesmo que eu já esteja no começo do segundo tempo e agora que as coisas estão começando a ficar animadas – ainda bem! aquele bode da morte não bateu. E quais músicas eu iria querer ouvir por último? Aquele último acorde, um timbre suave da voz do meu pai no tempo em que ele cantava pra mim dormir e eu nem notava ele desafinar, ou aquele último rock’n’roll, ou um gemido gostoso de... hmmm... tesão?
Deixa isso pra lá. O que tiver que acontecer, espero que aconteça mesmo. Acho que hoje eu vou abandonar o carro na garagem, preciso respirar um pouquinho desse ar contaminado pela certeza de ‘não haver um amanhã’. E eu espero que ninguém trabalhe e vão todos para seus lugares favoritos; que as garotinhas estejam sem chapinha, nem maquiadas desde as cinco da manhã e que não usem aqueles saltos altos filhas da puta, porque conheço alguém que quase morre por causa deles; e decidam ter a coragem de mostrar suas caras limpinhas, sem máscaras ou camuflagem. Vou sair e olhar nos olhos daqueles que eu nunca vi, que nunca cruzaram meu caminho e que, embora não tenham feito nenhuma falta na minha vida, nunca mais nos veremos de novo depois dessa última única vez.
Aliás, que último dia é hoje mesmo? Acho que essa perda de memória é efeito colateral de um dia sem amanhã. Uma segunda-feira? Porque não um domingo? Se bem que podia ser sexta-feira, e aquele clima de que tudo vai acontecer até que tudo acabe antes mesmo da galera pirar o cabeção. Não! Isso não! Seria muito punk e uma injustiça sem sentido se o amanhã, sabendo que não virá, decidisse foder logo com a minha hoje-sexta-feira. Não vou ficar atolado nisso, até porque não importa qual dia deve ser hoje, sem amanhã, é sempre sexta-feira.
E a ampulheta do tempo já está me desesperando. Faltam algumas poucas horas pra o sol ir embora e apagar esse azul lindo, tipo “véspera de um dia que não virá”, os passarinhos vão dormir e logo não ouviremos nada além do som de buzinas a cantar; aquele calorzinho bem gostoso que faz no meio da tarde já está se misturando com o sereno… vou ali fumar um cigarro e apreciar a vista, tragar um pouco de inspiração pra continuar aqui ainda hoje. Cinco minutinhos e eu já volto.
É. Acho que agora não tem mais volta. Aquele sol quentinho que eu estava esperando que me abraçasse já foi coberto pelas nuvens e, lá fora, ele está só esperando para não voltar mais amanhã; tão apressado o bichinho, precisava ter visto. Já se foi o último cigarro e os pássaros com medo da chuva. Agora realmente eu já me sinto num daqueles filmes apocalípticos, o céu se fechando com nuvens carregadas e os anjinhos descendo com cara de mal tocando em seus trompetes o melhor do blues. Aí eu penso que o meu melhor amanhã tem que ser agora, hoje. E o próximo segundo é o mais longe que eu posso chegar, apesar de eu não ter mais tantos segundos quanto eu gostaria de ainda os ter.
Tudo bem, já que eu ainda não decidi o que vou fazer neste meu último dia soberano. Mas ainda ficarei aqui, de pé, vou deixar a chama acesa até que me queime por completo. Vou eu, nessa escuridão, com essa vela na mão, minha minúscula chama de esperança em reaver o meu hoje no dia seguinte; e posso até aproveitar o embalo e fazer um jantar a luz de velas só pra mim e meus pensamentos pairando por aqui para ver se a gente consegue chegar num consenso a respeito das nossas últimas horas antes do grande sono.
É. E espero que seja assim, bateu meia-noite e que todos caiam num sono profundo; nada de ‘estátua’! Todos os corpos parados ali no chão, aquele poeirão de areia nos cobrindo a cada dia, e nem vai ter urubú pra fazer a limpeza, os copos parados sobre as mesas, a comida intocada ainda na panela, aquela água na boca vai evaporar junto com todos os desejos que restaram nas faces, metade do cigarro ali estacionado no cinzeiro e aquela fumacinha sem graça subindo... e tudo vai embora, assim, nessa delicadeza toda, sem direito a nenhuma trilogia.
Depois de tudo que se passou, dia após dia, cada fralda, mamadeira, brinquedinho, minha primeira farda da escolinha, os primeiros amiguinhos brincando comigo e eu olhando meus pais ligados em mim pelas brechinhas da sala da diretora, a primeira gazeada, as provas, a primeira namoradinha do colégio, a primeira expulsão, a galera que me zoava, o colégio novo, o primeiro baseado depois da aula e a viagem no ônibus até em casa, o vestibular, a primeira aprovação, a reprovação, as turmas, aquele clima dos playboys na faculdade, a primeira formatura, a segunda, a terceira, e os empregos que não apareceram, as oportunidades que eu deixei passar, o chute no pau da barraca, os meus primeiros empregos, filhos, casamento, paternidade, eu, eu, eu e eu, família; tudo não foi em vão. Pelo menos se ninguém acordar amanhã, ao menos que nos restem nossas memórias, tipo filminho no teto do quarto. Acho que a gente vai dormir e vamos todos pra um cinema. Cada um na sua sala assistindo seus filmes, sem direito a cortes, tudo como foi e a gente não vai poder mudar nada, a não ser nosso sentimento em relação a tudo. Isso é; se ainda houver memória disponível pra gente poder assistir, pois do jeito que eu estou a imaginar, vai ser: pronto, acabou e pluft! Tudo escuro. Sem som, imagem, nem sentidos... um nada absoluto.
Final de tarde chegando, esse crepúsculo fim de carreira está lindo, imagine que estão todos, mas todos, inclusive os bichos todos, parados, extasiados diante do último pôr do sol. Não há um zunido no ar; respiramos o mesmo ar, bebemos a mesma água, precisamos de tudo que pode ser comum; e a grande bola de fogo encosta na terra sem aquecê-la, ainda me escorre a última lágrima pelo canto dos olhos, sem vergonha, sem temer. Parece um ótimo começo de fim.
Aí eu fico aqui em casa, assim, sem noção de mais nada, porque, por incrível que pareça, não há aquelas cenas do povo se rebelando, destruindo e saqueando tudo que vê pela frente, cada um caçando seus piores inimigos até que não sobre mais ninguém, o pandemônio.
De certa forma, acho que esse lance de ninguém estar vivo fez o povo refletir um pouco – os que receberam aquela maldita cartinha. E olhe que eu só percebi tudo isso em alguns olhares.
Nesse caminho que vem aqui pra casa, nenhum som do vento, o último cigarro já fumado nem está me fazendo tanta falta agora; a última dose de vinho nesse copo raso ainda aqui na minha mão, o desejo de morrer em casa, sentado na varanda colocando uma criança pra ninar. Bichinha, sem noção do que está por vir.
O sol já partiu há bastante tempo, e minhas últimas horas acordado não sei como serão. O dia inteiro aqui parado, deitado, todo bagunçado, olhando a vida passar, desfilando diante dos meu olhos, tão bela e formosa; não fiz nada! Absolutamente nada merecedor de um busto de bronze enfiado na beira da praia e o povo batendo foto. Mas, definitivamente, não quero isso.
Por sinal, não queria muita coisa hoje. Não queria estar em minha companhia, um abraço meu, o meu olhar no espelho atento a todo ou nenhum movimento meu; não queria ter me julgado e me sentenciado a ficar aqui deitado feito um rola-bosta depois que bate na parede e cai, inerte, sem poder levantar, alheio a vontade dessa ventania que começou.
O tempo passa. Essa coisa angustiante tão presente em cada momento, chega a ser imperceptível nesse instante que agora se manifesta. O tic tac do relógio, acompanhando meu coração em pedaços, lamentando o fim tragicômico de um dia tão maravilhosamente vivido, espaçado, derramado numa peneira e que me acena adeus de lá do fundo do ralo. Não penso em dormir nesse instante de adrenalina, sinto um forte choque latejando em mim, uma vontade de transbordar de uma saudade póstuma de tudo que ainda não veio, do que ainda não senti, mas que reside tão latente e vívido em mim.
E apesar dessa angústia benzida com minha tristeza socada nessa sala vazia, não pretendo baixar a cabeça. Vou gritar com essas lástimas que escorrem em meu rosto que eu não vou partir. Não vou! Não vou! E não vou! Porque eu sou imortal! E algum idiota pensou em me matar logo hoje... mas hoje eu não vou morrer! Porque me apaixonei, e, assim, serei eterno! Serei pluma ao ar, atraindo os olhares infantis, eternamente a dançar no ritmo do ar, levemente embriagada, sem derramar sequer uma gota de lágrima sobre o papel; e viverei assim desbotado, irreprimido, em silencio, numa alegria contida, contagiante. Sem chorar sobre qualquer passado, como sorriso de lua que vai minguando, refletindo apenas, uma luz que se exauri, de um ser formidável.
Vou viver de minha própria beleza, macia, delicada, robusta, intocada, primitiva. E nesse último segundo, meu mundo não pára. Meus olhos não fecham e o desespero não se separa. Não vou baixar minha guarda para um final que insiste em permanecer, que não vai nunca me deixar em paz, porque por mais que eu dele fuja, sempre irá me acompanhar. E por isso eu faço vista grossa, que tenho como um legado transmitido minuto a minuto, e não deixo esse milésimo infinito se esvair dos meus pulmões. Porque eu aprendi a lutar por mim e pelos meus próximos, e jamais, jamais eu posso desistir desse projeto chamado Eu. Não vou deixar esse tempo filho da puta me fazer desistir nem tampouco que essas barreiras me impeçam de tentar, porque, apesar das minhas fraquezas, tenho mãos fortes, e com elas escalarei qualquer obstáculo.
E se não houver um amanhã?! Para se desvencilhar dessa crosta impregnada e pesada sobre cada um de nós. E se eu não acordar daqui a um segundo… definitivamente, hoje foi um dia do caralho! E o seu? Qual seu melhor dia? Se você preferir esperar que o seu dia perfeito parta de mim, esqueça um amanhã perfeito. Porque, se eu desistir agora, apesar do sino estar prestes a tocar e terminar tudo nesse próximo instante-agora, talvez nunca acabe vivendo perfeitamente o hoje, esse instante puro e sereno que agora se realiza em mim, em você e em todos que nos cercam. É. E se realmente não houver um amanhã... hoje é o dia perfeito pra tentar realizar tudo de novo.
…E aí sigo o mesmo roteiro: cuecão verde, calça jeans básica, meias folgadinhas de tão velhas, camisa do tipo ‘começo de semana’, a barba mal feita – porque continuo acordando tarde de mais para dar um jeito nisso, aquele banho básico de perfume, pasta na mão, sorriso ainda despenteado combinando com esse cabelo “sarará crioulo” que não toma jeito nunca, aqueles sapatinhos velhinhos polidos nos pés e os pés na rua. Tudo de novo! Com exceção dessa minha nova expressão de quem nunca desistiu, nunca. Sabe? É que sempre acreditei que hoje, exatamente hoje, eu posso tudo caso não haja um amanhã.
Amanheceu, e eu ainda sinto aquele gosto amargo de mais uma noite que passou e isso me desce a garganta travando...

terça-feira, 17 de junho de 2008

Correr

Corro porque sou kantiana. Não sigo os instintos da minha natureza, mas, sim, torno-me aquilo que não sou por uma razão maior. Procuro sempre dominar minhas deficiências, sendo a preguiça a maior delas. Poderia estar perfeitamente preguiçosa, mas não estou.

Outra ressalva, em minha alma, é que ela é triste. Só que não posso estar triste, pois devo, à minha obra, maior discernimento e, às minhas filhas, a força para criá-las fortes. Então também corro porque o contrário disso seria chorar, reclamar sem nada fazer e fumar mil cigarros. Dizem que quem tem a lua em Peixes, no zodíaco, como eu, tem tendência aos vícios. Corro, portanto, dessa queda para a autodestruição, pois não existe melhor química contra depressão do que a endorfina.

Correr, assim, é meu remédio. A minha meditação. Correndo sozinha, estou em minha melhor companhia. Faz mais de dez anos que sigo fiel a essa saudável rotina. Já adquiri até uma sesamoidite crônica, mas tenho um bom médico de pés, e palmilhas especiais.

Dizem, os invejosos, que correr envelhece. Bom, o tempo envelhece. E eu prefiro enfrentá-lo na minha melhor forma. Nunca tendo sido gostosa, correndo, jamais ficarei caída.

Há os que garantem que correr é um modismo urbano. Não sinto dessa maneira, ou jamais teria me tornado adepta. Sou avessa a coisas “in”. E, como também não sou dada a coletividades, sequer costumo correr em grupo. Mesmo nas corridas dos circuitos, das quais eventualmente participo, quando não estou sozinha, estou com um amigo silencioso.

Corro, acima de tudo, porque gosto. Às vezes, chego quase a chorar, tamanha a emoção. A sensação é de que estou deixando o que fui – meu passado é um resíduo que defendo, mas não carrego – para trás; e meu corpo agradece, renovado. Todos os músculos bem preparados para minha defesa, ou daqueles que de mim precisarem.

Sim, corro porque posso. Agradeço aos bons joelhos que possuo, que me sustentam sem reclamar. Claro, tenho métodos, tenho cuidados, tenho as minhas trilhas prediletas. Dou o melhor de mim nesse projeto, pois dependo dele para viver. Porque corro, não fumo mais. Porque corro, alimento-me melhor. Porque corro, não perco as sextas na biritagem – adoro correr aos sábados.
Concluindo, corro para não preencher perfis óbvios. Pois correr, no meu caso, é praticamente uma contradição. Porém insisto nisso, encarando como uma manifestação política, talvez mais significativa que votar. Corro, por causa disso, com toda a elegância e humildade. Aprendendo a cuidar bem desse corpo que Deus habita.

Por fim, eu corro porque acho bonito gente correndo, e quero que as minhas filhas vejam que todos somos capazes de mudar. E porque não suporto fazer regimes – é isso: corro porque adoro comer pizza à noite.”


Fernanda Maria Young de Carvalho Machado