quarta-feira, 8 de novembro de 2006

Artigo Indefinido

(para ler ao som de Portshead – Glory Box)


Artigo Indefinido

Estou escrevendo para ti porque sequer consigo escrever para mim e em toda essa reviravolta... volta e meia sou meio eu...
só hoje vivo em mim o que não pude em ti...
hoje o que pode ser, foi... e o que nós somos?
fomos vários e multicoloridos numa única realidade em preto e branco
tu era em mim o que faltava em mim mesmo...
sou aqui o resultado metamófico do que fomos
e com toda ternura ainda sustento tu em mim.
já não sei mais explicar o inexplicável mundo dos homens,
e já não há explicação para tanta inexplicação.
quase que me complico para chegar aqui, mas entre um
tropeço e outro uma mão amiga não esteve ali... só a mão...
só... e a mão... e eu só, tropeçado ali no chão.

Quando acordei, estava meio indefinido... eu, tu e o mundo... tudo foi por agua a baixo. Meus sonhos não foram sonhados por completo, sempre tinha um sonho que se sobrepunha ao meu e dentro deste, haviam mais e mais sonhos para sonhar sobre meu sonho. Acabei ficando assim, no meio de tudo. A meio caminho daí e a meio daqui... sempre meio atrazado, meio surpreso, meio afastado de tudo que eu quis, meu sonho meio sonhado... meio feliz e meio triste... até minhas lágrimas foram meio derramadas e parte delas meio evaporadas. Todos os planos meio planejados, foram também meio realizados.

Depois que você foi embora... tudo ficou meio mais triste. Perdi o fio da meada e aí já não fazia idéia em qual lado das metades eu estava. Metade foi e metade ficou. Me tornei meio bonzinho e um pouco malvado... afinal nada parecia estar meio do meu lado. Tudo por aqui correu bem... e ainda corre. Meio pra frente e meio pra trás. O pouco do que restou... deixa eu ver...hummm... só lembro pela metade. Fotos, abraços, beijos, ensaios, sobe-e-desce, amassos e amassos... tudo por inteiro... na memória: só a metade.

Porque tudo em mim que eu tinha de mais vivo
Cortaram a metade: o mais e o vivo
Agora é meio mais e meio vivo.
Cadê tudo o que era intenso e com fervor?
As pessoas meio que sumiram... e só as fotos contam a história, naquele momento, por inteiro.
“Parei, e vi como que em flash back...”*
Parti para nunca mais voltar... a outra parte ficou...
Cresceu... conseguiu um emprego, casou e teve filhos...
Ficou meio careta e meio rebelde
Vestiu uma boa roupa e aplicava golpes de sacana
Viveu meio assim: dia e noite... sabe explicar o porque de “sol da meia noite”?
Fazia sol em plena meia noite
Saía andando por aí meio sem caminho
Meio perdido e meio se achando...
De noite era ele... e de dia era meia-noite
Ele era impreciso, de pura imprecisão. Foi meio anoréxico. Apertava um pela metade e desse mesmo degustava só a metade e só dava para viajar até a metade do caminho onde pensava que iria te encontrar. Quando se apaixonava... não sabia onde estava. Sempre meio perdido. Essa parte era sempre compromissado mas não estava nem aí para o resto do mundo, não era nem a metade do que seu outro meio aparentava ser.

Tudo tinha começo e meio; e o fim era muito distante.
Nada de meio nesse ponto.
No tempo sempre ficou vago a parte da história mais interessante,
Era quase tudo ao mesmo tempo; a fração dentro da fração
Ficaram as boas coisas, as boas causas de nossas lutas.
Sinistro ficou o tempo depois de tantas festas e farras a beira-mar
Noites a dentro que sempre nos reunia e fazia o tempo passar
Todos tinham um inimigo em comum: o medo do próximo passo

Mandavamos mensagens para o além... que iria muito além daquele ponto
Os trocadilhos sempre faziam bem
Meio bem, meio mal.
Nosso comportamento era tudo o que não queriam
Sempre fui a mais negra dentre as ovelhas
A ovelha-lobo
Que fazia parte daquela outra parte debandada
Em busca da vida que não pude ter nem sonhar se tivesse deixado que me levasse
As noites sempre tentava morrer
De morte morrida e induzida
Requisições e documentos não faziam sentido nesse caminho
Aqui basta seguir em frente, não precisa pedir licensa para passar
Todas as portas aqui estão abertas

Entre um gole de vinho e outro conversavam eu e minha embriaguês
Esta não falava nada-com-nada... sempre em grau etílico elevadíssimo
E instigada a qualquer estímulo involuntário que aparecesse
Eu, continuava sempre o mesmo
Sempre estimulando uma reação em cadeia
Cavei túneis até, e facilitei fugas milhares de vezes
Eram minhas fugas

Nunca gostei de ser sujeito qualquer
Gosto de definir, mesmo que continue sendo indefinido
Os artigos sempre vinham antes das boas notícias
E pegava

Não haviam marcas nos rostos dos descarados
Mandavam ir arrancar as uvas das viúvas e correr
Aquelas velhas sem vergonhas adoravam conversas bobas de gente enterrada
Acabavam enterrando elas mesmas num monte de merda
Eu corria e deixava aquela massa homogenea pra lá
Jamais liguei para o que elas pensavam
Corria antes que algum pensamento pudesse me atingir

A palavra sempre na borda do frasco
Abria um e bebia frases inteiras
Não era sopa de letrinhas, a identificação era impossibilitada
Mas cruzava todas elas em cheques falsificados

O outro era malando
De passear pelas calçadas pedindo esmolas e sair de carrão por aí
Não precisava ter nenhum
Bastava a vontade de ir... até onde ninguém o pegasse
Ele era uma gaiola dentro de si, guardando um passarinho com as portas abertas
Percebia qualquer movimento ou um bater de asas que vibrava por todo o corpo
A vontade que tinha mesmo era de voar mas tinha medo de altura
Para tantas loucuras, não havia espaço para sentir medo
Com uma névoa sobre os olhos, cada um via de uma forma cada movimento
Em lados opostos, sempre se opunham a ele mesmo, cobrindo inclusive a retarguarda

Ainda conseguia ouvir a batida da nossa música... “tun tá tun dun, tá tun dun, tá tun dun...” aqueles graves batendo como coração calmo e alvoroçado. Eu te devorava e tudo mais e em mim só aquele ardor; sentia-me reencarnado, cada batida um orgasmo cósmico; lembro com detalhe daquela penumbra que envolvia cada momento e nos levava ao deleite das boas coisas da vida. Transávamos um ou três baseados e viajávamos a noite toda sem ter que informar a qualquer nosso destino. Não precisávamos de asas, pois era tudo tão leve que bastava nossa respiração ofegante para levantarmos vôo e sair sem destino previamente definido.

Sempre preferi participar das grandes máfias, o outro não... estava mais preocupado em consertar o desconserto antes da bifurcação. Corria atrás do próprio rabo. Um cão sem osso pra roer. Tudo aqui é uma grande e enorme máfia; sempre tem um jeito de levar vantagem vendendo doce. (risos)
Aqui tudo fede a perfume importado
Pneus sempre queimam o asfalto, o próprio e intocado
Ando a três dedos do chão que é pra não cansar
Fodo 7 vezes por semana e mando bala em muros pra demarcar meu espaço
Saio pelas ruas sem ter nada pra fazer
Vez ou outra dou uma de mané só pra ver qual é que é
Ver os malandros em que não se deve confiar e perceber no olhar que alguém está se achando esperto demais; não é nenhum teste, é somente para satisfazer a perspicácia e dar umas risadas por dentro
É sentir-se um Deus aparentemente mortal; ok, admito, é um teste, onde o único aprovado sou eu

Quase sempre estive do outro lado do muro, espiando por brechas que algum pedreiro havia deixado justamente para aquela finalidade, dali viam-se vultos e conversas pouco excitantes.
Tudo ou nada eram uma constante dúvida. Ou tudo sem nada ou nada sem tudo; queimava lembranças que não queria guardar trancado no meu quarto vazio e percebia que as lembranças viravam fumaça pálida e sobresalente, em pouco tempo esmaecia; mas continuavam lá. Era uma tentativa inútil de escapar. Quanto mais queimavam mais eu me aquecia e via claramente o gelo de meu suor congelado derreter.
1, 2, 3... 5 horas da manhã e eu aqui com as olheiras arrastando no chão e tropeçando como bebado vagabundo. É, finalmente mais um dia, e aqui estou eu. Não havia motivos para aquela preocupação, na realidade nada o preocupava, era angústia com ansiedade e um pouco de ressaca. Este sim era louco. Louco que julga e dá a sentença, atira pra matar olhando no olho e depois se contorce todo estralando cada osso do corpo; só não era profissional por falta de regulamentação.

Uma vez era este que estava sendo observado badernando, sentiu um cala frio subindo a espinha; olhou por uma brecha naquele muro chapiscado e cheio de lodo e se deparou com ele mesmo olhando-se olho no olho, se é assim que eu posso dizer; era a mesma cor de olhos, as mesmas marcas na irís... de repente um fio os ligavam... se bem que a corda era muito mais forte de um dos lados, e havia uma resposta meio óbvia, advinhem: as pupilas estavam dilatadas do outro lado do muro. Mas lá do outro lado, o “são” conseguia se salvar.

Caminhei mais de mil léguas sem um copo d’água, nem parei pra mijar. As outras mil léguas me rastejei. Me fingia de morto que era para que me levassem pra casa. Parei no meio do caminho e me encontrei; costumava viajar muito e ir até o final, este não era tão simples assim. Jogava cartas comigo mesmo e tinha que prestar atenção se eu não estava me trapaceando. Um tão honesto, outro tão lãdrão.

Deixava muitos passarem na minha frente que era pra não ter que olhar pelo retrovisor. A visão era direta no alvo; bastava apertar o turbo e lá eu me espatifava. Realmente, eu confesso, era muito engraçado ver o desespero no rosto dos outros, e ele ainda tentava se fazer de inocente... e não havia quem não acreditasse.

Em todos os lugares tinha um som que completava; tenho certeza que ele não era o único a sentir isso. E cada batida soava como um encostar de um desfibrilador em alta voltagem. (risos) ele amava sentir aquilo e, modéstia parte, ele ficava ótimo naquele rítmo; não conseguia passar um segundo sem admirá-lo. Sempre radiante e intocável. Via-se os raios em volta dele e ninguém ousava sequer chegar próximo. Adentrava qualquer lugar, bastava aquele olhar profundo e gelado combinado, quase sempre, com uma leve mordida no canto direito dos lábios inferiores e lá ia ele, em todos os lugares. Nunca comprou um bilhete para entrar. Sentia um pouco de inveja, pois sempre entrava sem um centavo no bolso e saía como bem queria; era descarado por natureza.

Ele não tinha leis, senão as dele que ele mesmo formulava e ainda assim conseguia infringir boa parte delas. Essas não serviam para mais ninguém, não tinha o que discutir e meio termo não existia quanto a isso; piedade Deus tenha daquele que ouse discutir qualquer artigo ou parágrafo; suas leis eram próprias e únicas, não repetiam-se jamais, como o tempo.

Ah, sim, tempo. Não discuto sobre isso; meu tempo é meu tempo. Retardado ou acelerado de mais mas é meu. Me recuso a andar de relógio pois meu tempo é extraterreno e meu dia tem 83 horas, 08 minutos e 28 segundos... aguenta? Não? então dorme suas 24 horinhas mesmo que é pra recarregar as baterias por completo. Imagine o tempo entre uma gozada e outra. Tinha que ser frio e calculista para aguentar. Por isso que eu não ponho, sob nenhuma hipótese, relogio em lugar nenhum. Tempo é relativo; a mim claro. Gosto de ver o tempo passar e passear por aí observando as oportunidades de fisgar um navio em alto mar.
E lá estava eu no alto do mar, de lá pra cá as coisa mudam um pouco de lugar. Eu, daqui pra lá, e, aqui, daqui pra cá. Mudei meu ponto de vista várias vezes que era pra ver onde melhor me encaixar. E advinha onde eu fui parar: no meio e do outro lado de lá.

Detestava trabalhar honestamente e sempre dormi de mais, mas sobrava-me bastante tempo para vadiar onde bem quisesse; jamais parava. Fazia tudo bem apressado, pois com um dia tão curto quanto o meu não podia perder tempo com nada. Foco. Alvo. E eu a flecha. Espreguiçava, soltava e...tchuuunnn... ía de cabeça; reto e empenado encravava em qualquer lugar.

Encostei na porta, acendi um cigarro, dei uma olhada no movimento ao redor: tudo estava sob controle. Entrei no carro de não sei quem, dei mais um trago no meu cigarro; acionei a ignição – o som ligou – o motor rosnava ao som dos trovões... agora sim posso ir a qualaquer lugar sem sair do meu lugar. As sombrancelhas eram franzidas e quando parava nos semáforos apenas lenvantava uma por vez, costumava observar todo o movimento e avaliar os riscos. Baixava os vidros e punha o braço pra fora da janela e estendia a mão esquerda que era para compartilhar sua tristeza com o mundo... os dedos sempre batucando a porta do carro. Dava outro trago e passavam as luzes da cidade serena. As segundas-feiras eram as melhores; só profissionais nas ruas. Parava em algum lugar e tomava algumas latas de cerveja. Parado, agora ele era a referencia para quem passava, inclusive para a meia noite. Monumental, fico aqui parado analisando todas as catástrofes ocorrendo dentro de mim e refletindo no mundo. Sou o homem bomba; não uma bomba de bosta, mas uma bomba atômica ali parada e ninguém desconfia de absolutamente nada.

Costumava voltar apenas sonolento... ía com sono, e lento. Naquelas horas não havia motivo para pressa, a contagem regressiva acabara de começar e não importava a velocidade que se ía, o tempo sempre ía contra ele.
E eu também ía contra; a razão do tempo não tem lógica... se basta nascer para morrer, porque contamos o tempo? Para sentir o relógio parar? Não faz sentido. Busco uma maneira de entender tudo isso mas aparento estar muitíssimo longe.

Detesto ficar só. Essa é uma palavra que, sim, merece ficar só. Só, lá no cantinho dela; põe um cobertor e deixa ela bem quentinha que é pra dormir até um pouco mais tarde e pra eu não ficar com ela. Eu na minha e ela da dela. Gosto de trapacear, embora seja por demais honesto, e, vez ou outra, coloco uma caixinha e meia de lexotan no suco de cabeça que é pra ela embalar nas baladas e relaxar um poco mais; sobra-me um pouco mais de tempo para ficar a só comigo mesmo. Nada tenho contra o fato de ficar só, mas é que tudo demora mais e some a paciência para poder me tolerar em minha companhia. Nesses momentos os surtos já são previsíveis.

Papéis. Números. Letras. Telefone! Por favor, faça-me uma ligação para o além e passe para meu ramal. Alô. Como estão minhas telhas? Ahhh... Perfeitas! Ficarei na última sala, naquela escondida de todos, mande reservar e não quero goteiras! E apesar daquele cheiro de mofo já não me importava em estar morto. Por isso não estou nem aí. De vir para cá, já vi muitos desistirem logo na aula inaugural. Pintarei um buraco na parede e quero ver neguinho pulando de cabeça; mas antes preciso que assinem o protocolo.

Não quero mais ser imortal... quero o sentido contrário: agora Eu saio da história para entrar na mortalidade. Cansei. Quero é continuar minha jornada de volta a terra perdida. A terra do nunca, nunca. A reforma agrária não sai meeeeesmo.
Sinto-me enjoado em vôo livre quando não estou em êxtase. Pra falar a verdade de uns 32 segundos pra cá tenho me sentido enjoado de tudo que está ao meu redor.

* Trecho extraído de livro Só de Bianca Ramoneda